"O segundo melhor momento para salvar os oceanos é agora. Tratamo-los como uma lata de lixo, de onde extraímos peixe sem limite"

April 08, 2025

“Enfrentamos uma situação sem precedentes na história da humanidade”, com o planeta a revelar grandes “anomalias” ao nível climático, oceânico e da biodiversidade, sublinhou Jürgen Renn, no evento “SOS Oceano”, em Paris, a 30 de março. Em entrevista ao Expresso, nesse dia, o também físico, matemático e historiador da ciência lembra que estamos apenas a "começar a entender como tudo está profundamente interligado” – o clima, o oceano, a biodiversidade – e como não devemos "promover ilusões de controle”, e sim “criar uma nova dinâmica na ciência, na sociedade e na política”, para que possamos viver bem nesta era do Antropoceno.

Vivemos uma tripla crise planetária ao nível do clima, da biodiversidade e dos oceanos, devido à atividade humana. O que podemos aprender com a história?

A história tem tratado as diferentes partes da Terra de modo independente e nós, humanos, temos bombeado gases com efeito estufa para a atmosfera como se esta fosse um reservatório infinito. Fazemos o mesmo nos oceanos e tratamo-los como uma lata de lixo, da qual extraímos peixe sem limites. Porém, agora estamos a ver os limites e a ver que as três crises estão fortemente interligadas.

As alterações climáticas aquecem o oceano (e este torna-se menos capaz de absorver gases com efeito estufa, como o CO2); e destroem a biodiversidade. E oceanos degradados tornam-se menos confiáveis ​​como um fator estabilizador do sistema terrestre. A história diz-nos que temos que mudar as nossas concepções.

Perante o conhecimento destes factos e da história humana, como vê a forma como os humanos têm atuado?

A humanidade sempre tentou expandir os seus interesses como se o planeta não tivesse limites, e já ultrapassámos alguns deles. O conceito de mare liberum, revolucionário no século XVII, entendia que o mar pertencia a todos e que todas as nações podiam usá-lo para o tráfego, a exploração e o comércio marítimo. Só no final do século XX, na década de 1980, se começou a perceber que havia limites para isso e foi preciso quase mais meio século para percebermos que precisamos de agir de forma diferente e olhar para o equilíbrio biológico e de poderes, olhando também para o interesse das nações menos privilegiadas do Sul.

Já ultrapassamos seis dos nove limites planetários. Perante a atual situação geopolítica mundial estamos a tempo de agir?

Os oceanógrafos costumam dizer que devíamos ter começado a agir para salvar os oceanos há 50 anos. Mas o segundo melhor momento é agora. O que quer que seja que possamos fazer pelo oceano e em relação às alterações climáticas é agora.

Considera-se um otimista cauteloso?

É preciso ser um otimista cauteloso para sobreviver. Mas é preciso também ser realista. Sabe, eu não acredito, por exemplo, em medidas simples de geoengenharia ou no que alguns chamam consertos tecnológicos. Temos que olhar para o sistema Terra como um todo. Por vezes o que consideramos de boa fé ser positivo, pode ter consequências nefastas. Exemplos como a plantação de grandes monoculturas para produzir biocombustíveis colocam em risco a biodiversidade; ou a produção de energia solar renovável, muito importante para nos afastarmos dos combustíveis fósseis, obriga à mineração e busca de terras raras. Assim, só se virmos o sistema da Terra como um todo poderemos agir de uma forma a evitar consequências prejudiciais não intencionais.

Vivemos tempos geopolíticos conturbados e assistimos a ataques à ciência, nos EUA, com a Administração Trump a negar as alterações climáticas. Como encara esta nova realidade?

Tenho ouvido os meus colegas cientistas americanos e o que se está a passar faz-me lembrar a novilíngua do George Orwell no “1984”. As pessoas deixaram de falar em alterações climáticas e em sustentabilidade e começaram a falar de outras formas para continuarem os seus projetos científicos.

Sendo um grande conhecedor de Galileu – preso por afirmar que a Terra gira em torno do Sol – pensa que haverá cientistas que hoje se vejam obrigados a negar o que sabem, nomeadamente nos EUA?

As pessoas tornaram-se mais cautelosas, algumas a ponto de negar a verdade, de negar o seu próprio conhecimento. Eu acho que a ciência tem que se tornar mais corajosa. Pessoas como Galileu pagaram um preço e somos lembrados de que a luta pela verdade e pelo progresso científico sempre teve um preço e temos que estar prontos a pagá-lo.

Se aqui estivesse hoje, Galileu seria um dos cientistas preocupados e que não se esquivariam aos poderes instituídos, nem a tentar convencer a sociedade. Galileu interessava-se por física, mecânica, astronomia, e estava ciente de que tudo o que fazia tinha implicações para a visão de mundo e para a posição dos humanos no cosmos. Tentou convencer a Igreja a transformar-se, aprendendo com a ciência, e até ousou interpretar a Bíblia.

Felizmente, a Europa de hoje ainda protege a ciência.

Na Europa continuamos a proteger a ciência e talvez nos tornemos um porto de abrigo para cientistas que não podem falar livremente ou trabalhar livremente noutros países, incluindo os EUA. Mas também temos que fortalecer os laços internacionais, as alianças que ajudam os cientistas a continuar a fazer parte da comunidade internacional, de modo a não ficarem isolados.

Em relação à situação geopolítica, temos de pensar para além dos governos. Nesta conferência do SOS Oceano e na Conferência do Oceano da ONU [que vai realizar-se em Nice em junho] também estamos a envolver outros stakeholders. As partes interessadas não são apenas os Estados, mas também há regiões, cidades, empresas, organizações científicas e organizações não governamentais interessadas em agir, particularmente nestes tempos geopoliticamente difíceis. Mesmo nos EUA há capital privado e estados federais mobilizados na área das energias renováveis, porque têm interesse económico nisso.

Sendo um especialista na nova era do Antropoceno, e havendo várias hipóteses para o seu início, em qual aposta? Começou com a Revolução Industrial ou em meados do Século XX?

É uma pergunta difícil já que depende da disciplina que a analisa. Se olharmos para a estratigrafia ou para a geologia, um início provável terá sido em meados do século XX, com o sinal do plutónio e dos microplásticos no lago Crawford, no Canadá. Mas o processo começou certamente, como diz, já com a Revolução Industrial.

A expansão da agricultura e a colonização também desempenharam um papel importante na homogeneização do mundo, tornando-o uma única esfera económica. Mas mais importante do que seu começo exato é a perspetiva abrangente que nos dá.

As múltiplas crises – clima, oceano, biodiversidade – estão interligadas e todas têm origem exponencial na atividade humana nesta era do Antropoceno. Esta pode ser a última era para a humanidade no planeta?

Sim, mas não no sentido catastrófico. Somos tantos, mais de oito mil milhões de pessoas (e a população ainda está a crescer um pouco, embora a curva demográfica possa eventualmente declinar). Como humanidade, somos parte do sistema da Terra e afetamos profundamente os ciclos deste sistema, como os da água ou do carbono. Mas mesmo com o colapso, provavelmente sobrevivemos biologicamente porque somos muitos. Mas as nossas conquistas culturais serão perdidas.

Não há como voltar para o Holoceno ou nos escondermos num canto da biosfera. Somos muitos. Criámos tecnologia, infraestruturas e fizemos tantas mudanças que vão durar séculos ou milénios e com as quais temos que lidar. Nos anos 70, avisámos para o uso da energia nuclear, cujos resíduos têm que ser guardados por milhares de anos e agora assumimos a responsabilidade por ainda produzirmos mais lixo nuclear e pelo que estamos a fazer à atmosfera e aos oceanos.

As crises estão todas interligadas. As migrações ligadas às alterações climáticas já estão a acontecer e serão reforçadas pela crise climática e, segundo as projeções do IPCC, podemos vir a ter locais inabitáveis na Terra.

Qual a importância da conferência dedicada ao SOS Oceano?

É muito importante enviar sinais para a sociedade, aumentar a consciencialização para estas questões e alinhar políticas com metas de sustentabilidade. Mas é preciso estar ciente do que chamo a tragédia dos objetivos de longo prazo, porque temos uma estrutura, temos objetivos e, de alguma forma, temos uma sensação de controle. E essa sensação de controle pode ser muito ilusória.

Se não for complementada com ação social em todos os níveis, essa estrutura estará vazia. Apenas ligando o alarme e colocando mais pressão no sistema não será suficiente, sem uma democracia bem informada.

E como vê o papel da ciência neste ‘barco’?

Vejo emergir uma nova forma de ciência, mais interdisciplinar, mais sistémica em perspetiva e mais preocupada com ações no terreno. Devemos ter o conhecimento a ser coproduzido com cientistas e outros atores locais e negociar soluções, sobre energias alternativas sustentáveis, ou outras. Temos projeções para a neutralidade carbónica e o Green Deal, mas o grande esforço normalmente é esperado para vir no final e torna-se irrealista.

Confia que atingiremos os objetivos do Acordo de Paris?

Estou cético se ainda podemos atingir as metas de Paris. Mas temos que ser honestos, caso contrário, só se produz deceção e desconfiança na ciência. Temos que ajustar os objetivos ao que realmente podemos fazer. Não basta apenas dar o sinal de alarme. Temos que mostrar caminhos concretos sobre o que as pessoas podem fazer.

Vamos ter a terceira conferência dos oceanos em junho (UNOC3) e contamos com 30 cimeiras climáticas (vamos para a COP30 no fim do ano, no Brasil). Mas tanta cimeiras não permitiu ainda fazer baixar as emissões de CO2 e defender a sério o Oceano. O que pensa destas acordos que se vão fazendo?

As curvas de emissões de gases de efeito estufa ou o consumo global de energia continuam num crescimento exponencial e apesar de as energias renováveis ou mais sustentáveis estarem a aumentar, o quadro geral ainda é o mesmo. Precisamos desses acordos globais, mas não serão a solução por si só. Temos que atrair novas dinâmicas sociais. Se as sociedades não perceberem e não quiserem, nada vai acontecer.

Como cientista diria que temos de lhes dar todas as informações, não só sobre a crise mas também sobre caminhos e as soluções tecnológicas no terreno, ao nível local, regional e nacional, para moldar um futuro melhor. O manifesto SOS Oceano tem boas metas, mas o resultado só acontece se falarmos com as grandes empresas de pesca, com as empresas de mineração, e levá-las a parar a exploração e a destruição dos oceanos. Temos que parar com as práticas destrutivas, como a pesca de arrasto de fundo, impedir a mineração em mar profundo e combater a poluição, ao mesmo tempo que se criam sistemas de governança que respeitam o oceano e o ambiente.

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